Observatórios
 
Este projecto reúne o trabalho de oito artistas, ancorado numa das muitas possibilidades que a ideia de labirinto pode desenvolver. Os dois artistas em residência, Armanda Duarte e Nuno Vicente, apresentam intervenções no espaço público, mais concretamente no Jardim Botânico Tropical do Museu Nacional de História Natural.
O labirinto enquanto tema da proposta curatorial, a partir da investigação de Kerényi[1], contribui para potenciar diferentes leituras das obras seleccionadas, numa exposição que se articula em quatro espaços expositivos diferenciados. Os dois projectos artísticos situados no Jardim Tropical constituem-se como observatórios do espaço enquanto imaginário poético e paisagem real[2], como experiência do lugar e das suas condições fenomenológicas.
Estes observatórios propõem-nos duas estratégias diferentes sobre aquele lugar, o jardim, com as suas características específicas e muito diversas: uma grande variedade de espécies, estufas, árvores, uma florestação que se altera ao longo do ano e que reflecte as alterações atmosféricas, uma flora exuberante, um museu, um laboratório, esculturas, marcos, casas para os serviços necessários, vários caminhos e alamedas. O jardim é habitado por funcionários que ali trabalham e se deslocam, visitantes, aves e outros animais, hoje mais próximos de uma fauna domesticada que faz parte da cidade onde o jardim tem lugar. Esta breve e simples descrição não pretende esquecer o período colonial, como território imaginado de um universo condensado no tempo e na compressão territorial que se estende, na sua diversidade botânica, aos quatro quadrantes do mundo como um catálogo vivo, ou como um roteiro ecológico intercontinental, que simultaneamente estabelece um mapeamento de diversas etapas do poder político que a utopia imperial representou até ao final do Estado Novo.
Se o jardim nos transmite uma imagem do mundo, qualquer que ela seja, esta será sempre obtida a partir de um determinado ponto de vista. E, neste aspecto, a obra de Armanda Duarte intitulada “residência” situa o espaço de observação a partir de uma casa, a Casa do Pátio do Ourives, mais precisamente de uma janela sobre uma das alamedas do jardim. O trabalho de Armanda Duarte coloca-nos, por um lado, perante a observação de um gesto contido, mínimo na acção e na aplicação dos materiais que constituem as suas obras. Por outro lado, contudo, a artista reclama sempre uma experiência do lugar: neste projecto, a residência enquanto processo de trabalho é um elemento constitutivo dessa relação próxima e íntima com a vivência do jardim, com os aromas, a luz, e toda a actividade atmosférica, humana e animal que vai construindo uma narrativa que, sem se tornar auto-referencial, se transforma numa relação entre a arte e a vida, na temporalidade que esta inscreve e nas sucessivas transformações quotidianas, quase como acidentes, que ocorrem na geografia que desenha o espaço intervencionado. Neste projecto, a materialização da obra prossegue, como referimos, uma intervenção reduzida ao mínimo possível, que passou pela escolha de uma sala da casa e de uma janela onde foram aplicadas duas pranchas de madeira que transformaram a sua fachada. Esta janela é uma modificação na arquitectura pré-existente, que para o visitante menos atento, o espectador, se assim quisermos, pode parecer uma janela entaipada, como um espaço fechado frente ao esplendor do jardim. Mas não é assim: a peça que Armanda Duarte construiu é constituída por dois elementos sobrepostos, deixando uma abertura, ou uma cesura, como uma pausa na métrica desse plano opaco, uma acção que é tão-só o desenho de uma linha. Essa pequena abertura é o registo, ou o obturador, onde se desenvolve a observação de um fragmento do jardim. Como um inventário dos dias, em que alguém passa e afasta um ramo, uma pena virá mais tarde a revelar-se como a anunciação da presença de uma ave. São este acidentes, aparentemente inusitados, como micro-acontecimentos na imensidão botânica enquanto dédalo imaginário, que residem na experiência artística de Armanda Duarte e nos reconduzem a uma dimensão humana do tempo, que o jardim parece perpetuar na sua constante renovação.
 
A referência ao observatório nas obras destes dois artistas tem uma ressonância quase literal nos títulos dos trabalhos que desenvolveram. Como vimos em Armanda Duarte, a sua residência, no âmbito deste projecto expositivo, intitula-se precisamente “residência”, e de certo modo há uma correspondência na utilização da linguagem escrita nas obras de Nuno Vicente. A escultura instalada no jardim tem como título “Escultura para o fim do verão”, e é um dispositivo construído para recolher as águas da chuva que anunciam o final da estação seca, o Verão. Esta transição do Verão para o Outono, enquanto enunciado no título da obra, é um repto para nos conduzir à temporalidade dos elementos naturais, uma métrica de um ciclo que hoje reconhecemos como uma memória na urgência das alterações climáticas. Neste contexto, a obra de Nuno Vicente pode ter uma leitura política, no sentido de nos recordar que aquela escultura representa uma construção recolectora na mediação de uma constante natural que se encontra actualmente menos definida e, por isso mesmo, mais distante dos nossos hábitos e costumes, pautados pela transição das quatro estações do ano.
A obra de Nuno Vicente confronta-nos com um sentido de auscultação ecológica a que não pode escapar uma consciência do humano, como os registos de acontecimentos naturais aliados a uma poética que religa arquétipos constitutivos da nossa relação fenomenológica com a natureza. A sua intervenção neste projecto integra ainda, no interior da Casa da Direcção, uma escultura de dimensões reduzidas, documentação e uma projecção de diapositivos com o trabalho desenvolvido durante o período da residência. Nos títulos de algumas das suas obras podemos encontrar um índice remissivo do seu trabalho, como por exemplo: “Monumento ao orvalho (I)”; “Escultura vertical para redirecção da luz matinal”; “Escultura para a primavera (II) (recolhedor de águas pluviais, para a criação de um lago efémero)” e, entre outras,  “Esculturas verticais para a convergência de dois feixes de luz sobre uma árvore: criação de duas sombras”. Este conjunto de esculturas desvela de uma forma mais clara um campo de possibilidades mais abrangente na obra de Nuno Vicente, e, se o tempo é um elemento estrutural, primeiro na relação com a natureza e deste modo com os diversos ciclos que transitoriamente se renovam, é exactamente nessa ideia de renovação que está a presença da morte, como podemos observar na escultura “Marcador de estações (biocromático) (sistema de cores representando os períodos de vida e morte de um parque)”, ou ainda em “Quatro sóis negros (obelisco com estudo de linhas: vertical, horizontal e a aproximação de ambas num motivo representando a morte e a vida”.
 
As obras de Armanda Duarte e de Nuno Vicente estão nos interstícios do desenho e da escultura, numa estreita relação com o espaço e o contexto onde foram criadas. E são um contributo para compreendemos que a temporalidade presente no seu trabalho é uma consciência do que é transitório e fluido, da vida e da morte. Mas também do silêncio daquele que observa, num tempo que não é medido. O labirinto enquanto metáfora é, na obra destes dois artistas, uma possibilidade para a superação dessa temporalidade cronometrada, e assim predisposta à contemplação e ao acaso – o tempo dos elementos, mesmo quando os contentores para a observação seguem uma métrica rigorosa na sua construção.
 
João Silvério, 2018.


[1] Estudos do Labirinto, Károly Kerényi (trad.  Assírio & Alvim, Lisboa, 2008).
[2]  Cf. Rosario Assunto, “A Paisagem e a Estética”, Filosofia da Paisagem – Uma Antologia, Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011, p. 341 e seguintes.